Foi uma matança em grande. A 10 de Maio de 1948 deu entrada no porto de Southampton, vindo da distante Antártida, o maior navio baleeiro do mundo, o Balaena, uma fábrica flutuante com mais de 15 mil toneladas. A bordo, o produto de uma devastação colossal, mais de três mil baleias mortas (repete-se: mais de três mil baleias mortas). Os jornais festejariam em uníssono o produto daquela caçada portentosa: 4.500 toneladas de carne para ser salgada ou transformada em bifes; 163.000 barris de óleo para fazer margarina; 10.000 toneladas de espermacete para produzir sabões, cosméticos, batons para os lábios. O Balaena rumara a Sul quatro meses antes, numa expedição saudada como uma operação militar, em revisitação da guerra há pouco terminada. Agora, porém, em vez de nazis, alvejavam-se baleias. Na empresa, de resto, tinham participado aeronaves militares, três biplanos anfíbios que detectavam o movimento dos cetáceos e a matança fora também conduzida com aparelhos bélicos, arpões carregados de explosivos, capazes de aniquilar em minutos animais de vários metros e muitas toneladas.
O povo regozijou com o sucesso da operação. A caçada do Balaena, talvez a maior matança de baleias registada na história humana, foi justificada e enaltecida como uma acção essencial ao esforço de reconstrução do pós-guerra, num tempo em que o Reino Unido vivia ainda as agruras do racionamento e da escassez de bens essenciais. Não era, aliás, a primeira vez, nem sequer a última, em que as baleias eram postas ao serviço dos esforços de guerra: entre 1914 e 1917, foram mortas 175 mil baleias (repete-se: 175 mil baleias) para produzir glicerina para as bombas do exército britânico e óleo para cuidar dos pés dos soldados das trincheiras. O ministro responsável pelas munições e pelos abastecimentos, Winston Churchill, fez um apelo urgente a que se aumentasse a produção de óleo em cadência acelerada, o que incrementou ainda mais a carnificina nos mares. Por muito estranho que nos pareça, as baleias foram usadas para fazer bombas (foi, aliás, a primeira vez que se fizeram fotografias aéreas dos grandes cetáceos a nadar placidamente nos oceanos). Também em Portugal, durante a guerra, e nas crises de subsistências dos anos 1920, a carne de baleia deu de comer a muitas bocas e o conflito de 1914-18 foi, muito provavelmente, aquele em que mais animais morreram: estima-se que quase meio milhão de cavalos, mulas, camelos e bovinos de carga foram dizimados ao serviço das tropas britânicas, outro tanto sucedendo do lado germânico, que também usou baleias, focas e golfinhos para produzir glicerina para as suas bombas.
Alguns, poucos, aperceberam-se da barbárie em curso. Em 1924, H. G. Wells, o famoso autor de A Guerra dos Mundos, publicou o ensaio The Impudence of Flags: Our Power Resources and My Elephants, Whales, and Gorillas, onde chamou a atenção para a necessidade de "proteger as baleias dos seres humanos e de proteger os seres humanos das bactérias", fazendo notar, em termos premonitórios (pense-se na Covid!), que era impossível salvar os animais dos oceanos e, ao mesmo tempo, proteger os homens de vírus e bactérias se continuássemos a pensar e a agir à escala nacional de cada Estado soberano. As epidemias globais, disse Wells, no rescaldo da Grande Guerra e do morticínio da pneumónica, jamais poderão ser erradicadas da face da Terra enquanto existirem Estados que reclamem o seu direito soberano a permanecerem imundos. O mesmo ocorria com as espécies ameaçadas: "um gorila não pertence à bandeira que reivindica o seu habitat, mas a toda a humanidade. Pertence-me a mim, a qualquer homem no Canadá ou no Texas, tanto quanto a qualquer africano ocidental ou a qualquer belga. Porém, não há um controlo mundial capaz de garantir a sobrevivência dessas criaturas grotescas e maravilhosas no nosso tempo e no tempo dos filhos dos nossos filhos. (...) Para eles, e para mil outros tesouros vitais, o governo mundial pode chegar tarde demais".
Este texto "ecologista" de Wells, digamos assim, seria republicado numa colectânea de ensaios, A Year of Prophesying, de 1924, onde existe também um curiosíssimo artigo sobre Portugal. O autor de A Ilha do Doutor Moreau esteve uma temporada em Portugal, ao que parece para se restabelecer de uma doença, e aqui escreveu a novela The Dream, passada num futuro utópico. Foi surpreendido por uma greve dos correios, que durante semanas o privou de correspondência com a América e o Reino Unido, e, apesar de descrever em termos simpáticos o nosso clima ameno e as nossas belezas naturais, deixa um retrato pouco animador da sociedade portuguesa e da pobreza do seu povo. Curiosamente, a refle- xão que fez, segundo o próprio, foi realizada a partir da leitura do... Diário de Notícias.
Apesar da extensão, vale a pena transcrever alguns trechos do artigo de H. G. Wells, com base numa tradução deles feita pelo sempre informado e atento Carlos Fiolhais:
"Quer esteja a chover ou não, o ar em Portugal tem uma felicidade particular e as pessoas desse país deviam ser tão felizes e prósperas como qualquer povo do mundo. O país tem uma situação magnífica e grandes territórios ultramarinos. Lisboa é o porto natural da Europa para a América do Sul e para a África ocidental. As oliveiras, as laranjeiras e espécies semelhantes podem ser aqui cultivadas nas melhores condições possíveis. A riqueza mineral é muito diversa e extensa, embora em larga medida inexplorada, e inclui filões radioativos de importância mundial. E por aí fora. Existem todas as condições para haver uma grande prosperidade. Mas, de facto, nunca vi uma nação com um aspecto tão pouco próspero. Uma enorme pobreza prevalece em toda esta terra. Nunca vi em lado nenhum do mundo, nem sequer na Rússia, trabalhadores tão andrajosos, tão remendados e esfarrapados, tão manifestamente malcuidados e subnutridos. E há também numerosas doenças que podiam ser prevenidas. As mulheres estão velhas aos 30 anos, dando à luz filhos que vão morrer; os homens estão corcundas aos 050. As casas mais pobres são casebres, e metade da população é analfabeta. E, no entanto, não se trata de uma população inferior. (...)"
Em face deste panorama desolador, Wells formula perguntas óbvias, mas de difícil resposta: "Porque é este povo tão conspicuamente pobre? Porque são as estradas tão abomináveis que mesmo entre este meu próspero e agradável idílio do Estoril e a cidade de Lisboa, a 12 milhas de distância, uma viagem de automóvel é uma aventura perigosa? Porque ficam as minhas cartas e telegramas a apodrecer nos correios de Lisboa e porque é que toda a gente diz que as coisas vão de mal a pior e espera remédios tão violentos como uma ditadura? Em nenhuma outra parte da Europa o enigma do declínio europeu se coloca de uma maneira tão crua como aqui neste lugar de sol ventoso, cores alegres e belezas naturais. (...)
Os comboios em Portugal estão num estado miserável e as estradas metem medo. Por todo o lado se veem sinais evidentes de uma administração incompetente ou corrupta. Um pequeno país como este, com uma moeda instável, não consegue assegurar uma educação moderna para o seu povo. Não existe um público que leia o suficiente para manter uma imprensa com poder e uma literatura de crítica política. Os ministros não são suficientemente vigiados. E, sobre as coisas que se passam nas colónias portuguesas, dificilmente podemos saber alguma coisa lendo a imprensa portuguesa. Parece que não existe opinião pública que olhe para lá. Os portugueses que enriquecem nas colónias depositam e investem o seu dinheiro no estrangeiro, em geral, em Londres; há uma saída permanente destes tributos do Império Português para os estados maiores e mais estáveis. Em nenhum lado da Europa se tem um sentimento tão intenso de um país penhorado ao capital guardado lá fora".
Como remédio, Wells advogou uma associação entre os países latinos da Europa, onde incluía Portugal, Espanha, Itália e França, e os Estados latinos da América do Sul. Tal não veio a verificar-se e a CPLP encontra-se hoje num estado pior do que péssimo, ferida de morte por Obiang e por Bolsonaro. Angola e Moçambique, ao absterem-se na ONU de condenar a Rússia pela invasão da Ucrânia, mostraram, de resto, que, nas alturas difíceis, a solidariedade para com a Europa - e para com Portugal - vale menos do que zero. "Não somos parte do conflito entre a Rússia e a Ucrânia. Não arrastemos Moçambique para problemas que não são nossos", teve o desplante de dizer no parlamento moçambicano Sérgio Pantie, deputado da Frelimo, ao qual bem apetecia responder que a cooperação e o auxílio ao desenvolvimento de Moçambique ou a luta contra o terrorismo em Cabo Delgado também não são um "problema nosso", de Portugal e da Europa, mas nem por isso faltámos com a solidariedade que agora nos foi recusada por Maputo.
A história da matança das baleias da Antártida é contada num livro recente de Philip Hoare, Albert and the Whale, que descreve as andanças de Albrecht Dürer entre os cetáceos que deram à costa no mar do Norte no ano de 1598. Três mil baleias foram mortas em 1948, em nome da necessidade de alimentar o esforço de reconstrução no pós-guerra, e talvez seja interessante recordar o episódio a propósito da actual guerra da Ucrânia, pois o principal efeito desta, o mais grave e duradouro de todos, será sobre o planeta no seu todo e sobre o combate às alterações climáticas, doravante adiado em nome de interesses mais urgentes e prementes. Ou seja: por muito que não queiramos ver, Vladimir Putin, neste preciso momento, já nos está a atacar, e duramente, afectando de forma profunda o nosso bem-estar e o nosso modo de vida e, sobretudo, comprometendo de forma irreversível o futuro do planeta e da humanidade inteira.
Muitos ainda vivem na ingénua ilusão de que a actual guerra é um conflito regional entre a Rússia e a Ucrânia, capaz de ser resolvido em termos puramente bilaterais, não se apercebendo de que a "operação especial" de Putin deu um golpe de misericórdia nas ténues esperanças de uma transição energética equilibrada e saudável. Se já de si eram difíceis de cumprir as metas e os objectivos capazes de conter o aquecimento global, eles tornaram-se agora muito mais distantes e inalcançáveis. Além dos efeitos directos no território da Ucrânia e dos países limítrofes, a urgência com que hoje se buscam alternativas ao gás e ao petróleo russos impede que se faça uma aposta a sério, amadurecida e articulada, em fontes de energia renováveis e mais limpas. À semelhança do que aconteceu morticínio das baleias na Inglaterra do pós-guerra, os governos agem agora à pressa e sob tremenda pressão, a pressão de opiniões públicas que tanto reclamam o fim imediato das importações de energia da Rússia como não estão dispostas a fazer os sacrifícios que uma medida tão drástica implica.
É estúpido e insensato estarmos a gastar biliões nos dois lados da guerra, apoiando Kiev com armas e mantimentos e, ao mesmo tempo, continuando a alimentar a máquina de guerra de Vladimir Putin. Desde o dia da invasão da Ucrânia, 24 de Fevereiro, até ao momento em que escrevo, a UE pagou à Rússia 47 mil milhões pela importação de combustíveis fósseis, valor que cresce assustadoramente a cada minuto. Como há pouco escreveu Susana Peralta no Público, o total da ajuda europeia à Ucrânia equivale a apenas dois dias do que pagamos à Rússia pelo gás e pelo petróleo. Ou seja, e para falar sem equívocos: nesta guerra, e por muitas declarações piedosas que se façam, a Europa tem estado muitíssimo mais ao lado de Putin do que de Zelensky.
A dependência energética em relação à Rússia, além de um terrível efeito sobre o planeta, tem outras consequências inaceitáveis: por um lado, permite ao Kremlin contornar os sucessivos pacotes de sanções impostos por Bruxelas; por outro, dá-lhe uma arma estratégica muito mais poderosa do que os seus tanques envelhecidos e os seus soldados desmotivados, como ainda há dias se viu com o corte dos fornecimentos à Polónia e à Bulgária. Num certo sentido, e sem receio de exagero, é como se os exércitos russos já tivessem reconquistado Berlim e ocupado a Alemanha e grande parte da Europa, pois o domínio que Moscovo exerce sobre as decisões de Bruxelas equivale, sem tirar nem pôr, a uma ocupação militar pela força das armas. Por cumplicidade de Schröder e imprevidência de Merkel, a Alemanha foi e ainda está capturada por Moscovo. Resta saber se os EUA estarão dispostos a tolerar por muito tempo esta nossa subserviência em relação à Rússia ou se daqui não resultará um outro efeito colateral, até agora pouco falado: a dependência energética da UE tornar-se um ponto de atrito capaz de ameaçar a coesão interatlântica e a unidade da NATO, pondo em causa, de igual modo, a harmonia interna da União e até o seu projecto.
Por isso, é urgente, é mais do que urgente, acabar de vez com a energia russa. Alguns estudos dizem que se Berlim decidisse romper abruptamente os fornecimentos russos isso teria consequências económicas catastróficas para a Alemanha e, por arrasto, para toda a Europa. Propõe-se, assim, um "embargo faseado", mais compassado e distendido no tempo (resta saber se não será Putin a decretar esse embargo, de forma unilateral e repentina). Aparentemente, será o mais sensato, pois, por muito que as sondagens digam que os alemães apoiam um corte radical, de um dia para o outro, nada nos garante que, na hora de pagar as contas do gás, da luz e dos supermercados, não surjam tensões terríveis, capazes até de ameaçar a estabilidade política das nossas democracias, hoje um bem mais precioso do que nunca (lembremos sempre que, na sua génese, os gilets jaunes foram um movimento contra o aumento dos preços dos combustíveis e o custo da transição energética).
A questão não será, pois, a de nos libertarmos ou não do petróleo e do gás russos, mas do ritmo mais ou menos acelerado a que isso se irá processar. Em todo o caso, temos de agradecer eternamente a Vladimir Putin: a forma bárbara e desastrada como invadiu a Ucrânia teve, entre outros efeitos, o de abrir finalmente os olhos do Ocidente para o caminho de loucura que estávamos trilhando, com Londres enxameada de oligarcas corruptos, a Alemanha à mercê dos gasodutos do Kremlin, a Gazprom instalada majestosamente nos Campos Elísios. Será que agora, de uma vez por todas, entenderemos o risco de fazer negócios com ditadores e alimentar o inferno offshore? Parece que não, desgraçadamente: enquanto estávamos concentrados na Ucrânia, em Março, num só dia, a Arábia Saudita executou 81 seres humanos, muitos por decapitação, a maior execução em massa na história moderna do país. Dias depois, Boris Johnson viajou até Riade, para implorar a Mohammed bin Salman que aumentasse a produção de petróleo saudita. Ou seja, sai Putin, entra Mohammed, é só substituir um ditador por outro, mas o problema persiste e tem um só nome: energias sujas, o petróleo, o gás, o carvão.
Como há dias notava Thomas Friedman num artigo no The New York Times, é aqui que bate o ponto: a guerra da Ucrânia, se já abriu os olhos da Europa para a sua dependência perante a Rússia, deveria abrir os olhos do mundo para a sua dependência em relação ao petróleo. Mais importante, muito mais importante, do que acabar com o petróleo e o gás russos é acabar de vez com o consumo de energias fósseis, todas elas, venham de onde vierem. A prioridade das prioridades não deveria ser encontrar alternativas aos combustíveis da Rússia, mas antes reduzir drasticamente os nossos consumos, industriais e domésticos, e desenvolver energias limpas e renováveis, as quais, ademais, são até mais baratas. As vantagens são esmagadoras: garantir o futuro do planeta; acabar com a dependência em relação a regimes autocráticos e corruptos (Rússia, Arábias, Venezuela, Angola, etc., etc.); libertar os países menos desenvolvidos da sua "maldição dos recursos", que os faz terem um modelo económico assente apenas na exploração de matérias-primas e, logo, eternamente atrasado e desumano.
O petróleo, não duvidemos, está a corroer a democracia no mundo, de Norte a Sul, de Leste a Oeste. As energias renováveis, pelo contrário, devolvem a soberania e a autonomia a cada país, dão-lhe liberdade, acabam com dependências corruptas e subserviências obscuras, reduzem drasticamente o poder de ditadores e suas camarilhas. Que seria de Putin sem o gás e sem o petróleo? Além da energia, que marcas comerciais ou produtos industriais russos conhecemos e consumimos no Ocidente? Não é sintomático que a anexação da Crimeia e a invasão da Ucrânia tenham coincido com períodos de alta dos preços petrolíferos? Não é sintomático que quase todos os grandes países produtores de petróleo sejam governados por regimes tirânicos e inimigos dos direitos fundamentais? É ao petróleo, aliás, que Putin deve o seu poder e a sua popularidade. Como diz Joshua Yaffa num livro há pouco saído entre nós, Entre Dois Fogos. Verdade, ambição e compromisso da Rússia de Putin (Relógio D"Água), "a grande sorte de Putin foi a sua acumulação de poderes coincidir com um aumento dos preços do petróleo a nível mundial, alimentando um boom de consumo sem precedentes na história da Rússia".
Há duas formas de reduzirmos a dependência em relação ao petróleo e ao gás. Uma é encontrarmos fontes alternativas de energia. Outra é diminuirmos o consumo. A primeira será tarefa para governos, cientistas e empresas. A segunda é missão de todos, começa na casa de cada um. A melhor forma de combatermos Vladimir Putin é largarmos o automóvel, desligarmos as luzes e os aquecimentos, apostarmos no teletrabalho, reduzirmos a velocidade nas autoestradas, pouparmos no que gastamos. O planeta agradece, a Ucrânia também.
Historiador. Escreve segundo a antiga ortografia