A legalização total da venda e do consumo de marijuana não correu como esperado. Mas há otimismo naquele que poderá ser o maior mercado de canábis do mundo.
Algures entre o vale de Coachella e a cidade de Desert Hot Springs, no sul da Califórnia, Mike Tyson vai montar o primeiro microfestival de música amigo do consumo de marijuana. Marcado para 23 de fevereiro, na propriedade de 116 hectares onde o antigo pugilista está a criar o futuro Tyson Ranch Resort, o Kind Festival terá rulotes de comida, bar, tendas de produtos, espaço recreativo com obstáculos e insufláveis. Um ano depois da legalização total do consumo de canábis na Califórnia, o festival terá também uma chillville - zona de descontração, em português.
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"Nota-se que as pessoas andam mais com marijuana", diz casualmente Charles W., um ator de 39 anos que consome a erva em forma de charro e comestíveis uma a duas vezes por semana. "Sente-se alguma diferença, não dramática, mas sente-se, por exemplo em concertos." Compra os produtos em dispensários ou através de amigos envolvidos na indústria e não notou diferenças de preço em relação ao período que antecedeu a legalização total. O que nota é diferença no marketing. "Há agora marcas que estão a tentar destacar-se e tornar-se mais fiáveis", refere. "Se essas marcas estiverem disponíveis num festival de música, compro. Porque não?"
No Kind Festival 2019 ainda não será possível fazê-lo, mas a organização conta "tornar isso realidade num futuro próximo". Até ao início deste ano, não era permitido consumir canábis em festivais de música, mas isso mudou com a entrada em vigor da Assembly Bill 2020, a lei que permitiu ao governo estadual aprovar consumo em qualquer espaço de eventos que receba luz verde das autoridades locais.
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E esta necessidade de autorização local não é apenas um pormenor. Na verdade, apesar do progresso feito e de ser totalmente legal comprar e consumir marijuana com fins recreativos, a Califórnia não se tornou a "meca da canábis" que se previa com a legalização, que foi aprovada pelos eleitores através da Proposição 64 nas eleições de novembro de 2016. O uso medicinal já era legal desde 1996, ano em que o estado se tornou pioneiro, mas foi apenas o sexto a legalizar para fins recreativos.
As estimativas iniciais eram megalómanas: antecipava-se uma explosão do consumo, o licenciamento de mais de seis mil lojas de retalho, um encaixe significativo de mil milhões de dólares anuais em impostos e um boom que transformaria o estado mais populoso do país (39,5 milhões de habitantes) num eldorado verde. Em vez disso, o Bureau of Cannabis Control, uma das três agências que regulam o mercado, emitiu apenas oito licenças anuais para lojas de canábis, mais 629 licenças temporárias. Para distribuidores, uma licença anual e 1220 temporárias; para organizadores de eventos, seis anuais e 95 temporárias. No total, 21 licenças anuais e 2792 temporárias.
Os números do quarto trimestre só vão estar disponíveis em fevereiro, mas já é evidente que a cobrança de impostos a nível estadual também ficou muito aquém do que estava orçamentado. Os dados fornecidos ao DN pelo California Department of Tax and Fee Administration mostram que o encaixe foi de 60,9 milhões de dólares no primeiro trimestre, 80,2 milhões no segundo e 93,1 milhões no terceiro. No total, 234,2 milhões em impostos sobre vendas, licenças e cultivo. Estes números não contam com os impostos a nível local, mas também aqui a fotografia sai desfocada: apenas 89 das 482 cidades da Califórnia permitem a venda de marijuana para fins recreativos. Ou seja, menos de 20% do total. Só no condado de Los Angeles, que tem a maior base de consumidores de marijuana do mundo, 82 das 88 cidades não permitem a venda recreativa - incluindo Beverly Hills e Calabasas, dois "quintais" da nata de Hollywood.
Porque está isto a acontecer? É uma tempestade perfeita de impostos elevados, regulação complexa, excesso de inventário e relutância de bairros ou cidades inteiras em permitir um consumo que há alguns anos levaria pessoas à prisão. "Impostos estaduais e locais excessivos sobre os produtos comerciais, nalguns casos totalizando quase 50%, desencorajaram a passagem para o mercado regulado", explica ao DN Paul Armentano, diretor adjunto da NORML - National Organization for the Reform of Marijuana Laws. "Além disso há várias jurisdições na Califórnia que continuam a manter moratórias nos fornecedores ou vendas de retalho, limitando o tamanho e o crescimento do mercado legal."
Esta evolução inesperada levou a consultora New Frontier Data a reduzir substancialmente as suas previsões para o volume de faturação gerado pela canábis legal na Califórnia. Neste ano, o mercado legal deverá valer 2,8 mil milhões, bem abaixo dos 3,8 mil milhões que já devia ter gerado no ano passado. Em 2025, o mercado deverá faturar 4,9 mil milhões em vez dos 6,7 mil milhões que estavam previstos. As vendas recreativas vão crescer a um ritmo anual composto de 15% nos próximos seis anos, enquanto a canábis para uso medicinal vai mesmo sofrer uma redução de 5% por ano.
Segundo o responsável John Kagia, esta turbulência inicial deverá passar, mas, "dadas as proibições locais, o êxodo do mercado medicinal e o tempo necessário para reduzir o número de operadores ilegais, a New Frontier Data ajustou em baixa o crescimento projetado."
Um dos argumentos usados para convencer os eleitores a legalizar o consumo era acabar com o mercado negro, mas esse negócio continua a florescer. Das 50 mil propriedades de cultivo que se estima haver na Califórnia, apenas cerca de duas mil se legalizaram. E basta meter o pé fora do carro em Los Angeles para dar com lojas e dispensários ilegais, apesar de o consumidor mais distraído poder não distinguir quem está licenciado e quem não está. A grande diferença costuma ser o preço, já que os operadores ilegais não têm de pagar licenças nem impostos.
"Pelo que percebo, o negócio está muito regulado", afiança Charles W., o ator, que parte do princípio de que as lojas onde vai estão legais. "A cidade tornou-se muito mais rigorosa em relação a regras", continua. Mas a verdade é que o processo de transição de uma indústria que andou nas sombras durante décadas está a ser muito lento. A New Frontier Data projeta que, em 2020, só 40% dos negócios tenham passado para o mercado regulado.
Muitas vezes não é por resistência à legalidade, argumenta Kimberly Cargile, uma veterana da indústria que tem assento no conselho de administração de oito empresas da indústria. "Essas pessoas queriam entrar no mercado regulado mas não conseguiram", afirma. "Noutros casos foi porque a cidade ou o condado baniu a venda, porque não arranjaram financiamento ou não encontraram o edifício certo de acordo com as regulações." O processo de regulamentação tem sido complicado de seguir, queixam-se quer proprietários quer agricultores, com mudanças nas regras e necessidade de investimentos avultados para concretizar a legalização. "Custa algumas centenas de milhares a alguns milhões de dólares para transitar para a regulação", conta Cargile. "A nossa indústria era só de pequenos agricultores, e agora as grandes empresas estão a tomar conta disto", aponta.
O Bureau of Cannabis Control reconhece que são precisos ajustes. "Recebemos feedback valioso da indústria de canábis e de proprietários durante os períodos de consulta pública das regulações propostas", disse ao DN o responsável Aaron Francis. "O nosso objetivo tem sido clarificar os requisitos para que os negócios de canábis operem enquanto continuamos a proteger a saúde e a segurança públicas."
Ao fundo de um caminho tortuoso cheio de curvas e vegetação densa, onde o telemóvel perdeu a rede há mais de meia hora, está a propriedade Bonnie Dune Organics. Dois mil metros quadrados de glória geográfica no nordeste da Califórnia, onde o solo é rico, a temperatura é amena e a chuva certeira. Os carreiros que há alguns meses tinham dezenas de espécies diferentes de plantas de canábis estão agora ao abandono. O material de cultivo e secagem foi fechado à chave e a dúzia de trabalhadores que laboravam nesta propriedade teve de sair. O resultado de uma proibição total de cultivo de canábis no condado de Calaveras, efetuada por um conselho de supervisores adverso às "modernices" da Califórnia.
"O meu negócio desmoronou-se", conta o proprietário Corey Kite, que nos últimos meses tem vivido de poupanças. "A minha propriedade está ali, sem ser usada", lamenta. "Fecharam-nos o negócio a meio da época e tive de destruir tudo. Foi um tremendo revés." A decisão encerrou 700 empresas e muitas já não voltarão quando a proibição for levantada, algo que Corey acredita estar para breve.
Apesar de considerar os impostos excessivos, o cultivador não é contra as regulações, algo que Kimberly Cargile também defende. "Os regulamentos estão a ajudar porque oferecem proteção aos consumidores, ao meio ambiente e ao público em geral, e fornecem um processo de licenciamento para que os negócios tenham mais proteção legal", frisa.
É isso mesmo que aponta Rafael de La Cruz, partner da Universal Brand Ventures e conselheiro da CWCBE (Cannabis World Congress & Business Exposition). "O Estado e as cidades estão a fazer um trabalho fantástico com os recursos que têm", argumenta, lembrando que a canábis "ainda é uma droga" e que, sendo "uma substância poderosa que afeta o corpo e a mente", deve ser muito regulada. A nível federal, aliás, continua a ser ilícita. A transição vai fazer muita gente perder dinheiro, reconhece o investidor, apontando ainda para outro problema: o excesso de produção. A Califórnia, que pode tornar-se o maior mercado mundial de canábis, produz oito vezes mais do que o consumo interno. E como não é possível exportar de forma legal (ainda que o mercado negro forneça 75% de toda a canábis consumida no país), há imenso desperdício de produto e de dinheiro.
O investidor acredita, no entanto, que 2019 será o ano da estabilização e que começaremos a ver a era 3.0 da canábis, em que alguns operadores vão demarcar-se dos "medíocres" e haverá mais inovação, com produtos funcionais que vão além das moléculas principais THC e CBD.
Kimberly Cargile partilha do otimismo e fala de "estabilização", mas aponta para o fenómeno NIMBY - not in my backyard (não no meu quintal) -, que justifica por que tantas cidades optaram por banir as vendas. "As pessoas não são contra, em especial da canábis medicinal, mas não querem perto das suas casas", explica. "Tem sido difícil provar às comunidades que podemos ter um impacto positivo e que os estereótipos não são verdadeiros."