Você, provavelmente, já viu esse filme: os sinais apontam para uma catástrofe, os cientistas alertam que uma tragédia está para acontecer, mas ninguém dá a atenção devida. Passam-se dias, semanas ou meses, as temperaturas sobem, mas a sociedade continua não dando bola, achando que eles “são loucos”, “mimizentos”. Os pássaros cruzam céus em fuga e os animais terrestres fogem em carreiras desesperadas. As lâmpadas balançam, o chão começa a tremer, os alarmes dos carros disparam... e, de repente, uma grande onda atinge a cidade, levando consigo tudo o que havia pela frente...
Nesta segunda-feira (11), o país assistiu, estarrecido, ao episódio de um médico anestesista estuprar uma mulher durante um procedimento de cesariana. Dentro de um hospital, ao lado de outros profissionais médicos, alheios aos movimentos do colega. O crime hediondo, que deve ser julgado em todos os âmbitos — criminal, cível e de conselho de classe —, é a face mais nefasta da Violência Obstétrica, que escancara uma série de outras violências que acontecem, todos os dias, nos hospitais e maternidades brasileiras.
A Violência Obstétrica é um termo utilizado para descrever qualquer tipo de violência, física ou emocional, sofrida por uma mulher grávida, independentemente de quem a cometeu. Obstetra, anestesista, enfermeira, juíza ou qualquer outra pessoa que estabeleceu uma relação de cuidado com a gestante em qualquer momento do atendimento, incluindo o pré-natal e o parto, até mesmo em situações de aborto. E, neste caso amplamente noticiado, essa violência obstétrica nada mais foi do que um estupro obstétrico.
No momento em que a mulher deveria ser a protagonista no parto, condutas inadequadas, ultrapassadas e ainda rotineiras podem levá-la à extrema vulnerabilidade. As mulheres brasileiras estão sendo violentadas pelo sistema, todos os dias. Em uma semana, uma menina de 11 anos vítima de estupro é condenada por uma juíza; na outra, uma artista é exposta de maneira vergonhosa pelo próprio sistema obstétrico; e nesta, um médico estupra uma mulher dentro de um hospital...
As imagens divulgadas ontem, feitas por mulheres funcionárias da enfermagem, desconfiadas da conduta do médico, falam por si só. No entanto, é preciso olhar para o entorno da cena, para entender o que mais poderia estar acontecendo naquela sala de cirurgia — ou, ainda que não fosse nessa cirurgia em si — que acaba validando esse sistema.
Vivemos em um país que tem em seu setor suplementar 86% de cesáreas e, no Sistema Único de Saúde (SUS) 35%, enquanto a Organização Mundial de Saúde (OMS) recomenda apenas 15%. Isso significa que a cada 100 mulheres brasileiras que pagam convênios, 71 já são violentadas em sua via de parto e, no SUS, são 20, pelo menos.
No caso desta semana, ainda não há informações sobre o que levou à realização de uma cesárea, mas em um cenário que tem muito mais cesáreas desnecessárias do que realmente indicadas, surgem algumas questões, que elenco abaixo:
Havia indicação para uma cesárea? Há, nesse hospital, algum controle sobre indicações de cesáreas ou elas são realizadas apenas pela vontade do obstetra, que muitas vezes, indica o procedimento mais pelo seu conforto do que pela saúde da mulher e do bebê e, para isso, muitas vezes, inventa algum diagnóstico? Ou o próprio hospital estabelece um fluxo que favorece muito mais a cesárea do que um parto normal?
Ainda que a mulher queira a cesárea, será que ela foi devidamente informada sobre os riscos que ela corre ao ir à uma mesa de cirurgia, sem antes esperar que o seu corpo funcione de forma fisiológica, e que ela pode continuar nesse processo enquanto haja segurança para ela e para o bebê? Ou seja, em 85% das vezes?
E sobre a dor de parto? Ela foi devidamente informada que existem métodos não farmacológicos ou farmacológicos disponíveis de alívio de dor em partos normais ou tem apenas a opção de uma anestesia para uma cesárea?
Existem, no hospital, profissionais capacitados e com o perfil para realizar esse atendimento obstétrico humanizado? Há estímulo à participação de doulas durante o trabalho de parto, incluindo a sua continuidade em casos de cesáreas? Há informações sobre o trabalho da doula, que é uma profissional que ajudará não somente no alívio da dor e da ansiedade, através de apoio físico e emocional, bem como ajudará na amamentação no pós-parto imediato?
E os mecanismos institucionais de controle de medicações utilizadas durante cirurgias? Eles existem? Até onde estudei, jamais encontrei referências técnicas de indicação de sedação após uma cesárea, a não ser em casos extremos de agitação psicomotora da paciente, ou seja, quase nunca haverá indicação de qualquer tipo de sedação, mesmo que mínima. Ao olharmos para o caso de ontem, com relatos de que este anestesista tinha o costume de sedar pacientes, a pergunta é: havia alguma averiguação em relação a esse método que ele usava? Isso era rotineiro nesse hospital ou somente esse anestesista tem essa prática? Será que tantas outras pacientes necessitaram mesmo de sedação? Os médicos obstetras nunca questionaram por que ele as sedava? Ou isso era validado também por eles por algum outro motivo?
E onde estava o acompanhante da gestante? No vídeo divulgado ontem, o acompanhante não aparece em cena, então, pressupõe-se que a gestante estava desacompanhada naquele momento. Será que ele foi retirado da sala por algum outro motivo, como acompanhar o bebê em outro ambiente? A lei do acompanhante no parto (Lei 11.108/2005) regulamenta que todo serviço obstétrico no país deve permitir a presença do acompanhante em todos os momentos em que a mulher esteja dentro de um serviço de saúde e ela só poderá ficar sem acompanhante se ela desejar — e ninguém mais.
E o bebê, onde ele estava após o nascimento? A Golden Hour, que é a primeira hora de vida do bebê fora do útero, é de extrema importância. É o primeiro contato pele a pele da mãe com o seu filho, é o momento em que se criam vínculos, em que há troca de bactérias naturais, bem como o estímulo à amamentação. A Golden Hour apenas não deve ser respeitada quando há risco de morte para a mãe ou para o bebê, ou simplesmente se a mulher não quiser. E somente ela pode decidir isso. Ninguém mais!
O ápice dessa possível série de violências obstétricas foi o estupro, praticado por um médico do sexo masculino, inserido em uma cultura patriarcal e machista, impune, que valida o estupro todos os dias e que mata (feminicídio), permeando todos os setores da nossa sociedade (e, por que não, dentro de uma faculdade de medicina?). Essa cultura violenta as mulheres diante dos olhos de uma sociedade que “endeusa” a figura médica, chamando-nos de doutor, mesmo sem termos doutorado. Em alguns hospitais, nós “doutores” temos à nossa disposição uma salinha chamada de “conforto médico”, com comes e bebes, enquanto técnicas de enfermagem e enfermeiras sequer dispõem de uma cadeira de descanso... Uma cultura tecnocrática e medicamentosa, que torna a fisiologia esquecida, como se fizesse parte de um passado retrógrado...
A somatória de Violências Obstétricas possivelmente praticadas neste caso, que serve de alerta para muitos outros, me enfureceu profundamente como ser humano, apesar de, como homem, não ter ideia do que é ser mulher e estar sujeita todos os dias a violências desse tipo. Mas, acima de tudo, como médico obstetra, não me espanta que tenha ocorrido, já que ouço todos os dias o aviso das cientistas, das médicas, das enfermeiras, das doulas e das advogadas, das mulheres, profissionais ou não, que bradam incansavelmente pelo direito de ditar as regras sobre seus corpos e que avisaram que um tsunami estaria para acontecer!
Braulio Zorzella (@brauliozorzella_obstetra) é médico obstetra (CRM 107.775/SP; RQE 74.082), palestrante, escritor, professor e ativista. É representante da rede ReHuNa (Rede de Humanização do Parto e Nascimento) (@rehunabrasil) e fundador do projeto Obstare (@projetoobstare) (Foto: Arquivo pessoal/ Braulio Zorzella)
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